terça-feira, agosto 10, 2010

Casar por amor é uma péssima idéia! – Parte 3

Retirado do site: http://nao2nao1.com.br/casar-por-amor-e-uma-pessima-ideia-parte-3/

Na segunda parte, descrevi exigências e expectativas, além de desmascarar o amor como uma paixão mais duradoura. Agora falo de generosidade e motivação. A pergunta, entretanto, persiste: além dos sentimentos, além do amor romântico, haverá uma outra base para o casamento?

O amor como ação (ou sobre a generosidade maliciosa que podemos ser)

Nosso problema (e o texto) começa na paixão, então vamos assumir que talvez paixão e amor não sejam coisas diferentes. Quebrar o senso comum. Alterar o início de tudo. Olhar nosso papel ativo no percurso amoroso.

Podemos recontar a história da paixão sem demonizá-la. Em vez de assujeitamento ou padecimento, ação vigorosa. Em vez de cair, andar. Quando estamos apaixonados, vemos qualidades positivas no outro (algumas já existentes, algumas projetadas, idealizadas, alucinações nossas, mas a maioria sementes que de fato florescem depois, quando mostramos com orgulho para todo mundo que duvidou: “Viu, ele sempre foi assim!”), temos energia constante (amantes não tem sono, já percebeu? não dormem e ainda são os mais atentos no trabalho durante o dia) e incentivamos nosso parceiro para que ele seja cada vez melhor e mais feliz. A paixão, nesse sentido, é o próprio amor logo de cara. Não aquele amor sentimento, romantizado, que colocava nossa felicidade em poder do outro (“Você faz, eu sinto”), mas um amor no qual somos nós que descobrimos o poder de fazer o outro feliz.

Isso tudo acontece em paralelo aos processos de fixação no outro. Misturamos as duas versões da história passional, atividade e passividade, oferecer e receber. Nosso coração confunde a felicidade que sentimos por oferecer com a alegria de receber. Sentimos tudo junto, sem distinção. É por isso que quando o outro se vai, nos deprimimos e demoramos a resgatar nossa capacidade de oferecer, sempre disponível, verdadeira fonte de felicidade.

Em meio a uma paixão, observe que sua verdadeira alegria vem do fato de você se descobrir capaz de causar felicidade, de fazer a diferença. Sua vida ganha sentido porque você dá sentido a uma outra vida. Contemple isso, separe isso da satisfação temporária de suas carências, exigências, mimos e expectativas autocentradas. Enquanto estiver apaixonado, olhe para você mesmo como um veículo da felicidade do outro e contribua para irrigá-la. Quando desejamos a felicidade do outro (mesmo que não seja conosco), e existem práticas meditativas específicas fazer disso um treino diário, lentamente liberamos a fixação, superamos o apego e qualquer sofrimento que o outro possa vir a causar em nós. Na ausência de apego, o outro não tem poder sobre nós. Então podemos nos aproximar, nos envolver e amá-lo ainda mais, sem medo algum de se machucar.

O amor é essa ação que já está presente na disposição incessante que ganhamos quando nos apaixonamos. Amor que já começa na primeira noite de sexo. Sim, pois eu não sinto amor, eu faço amor. Eis o verdadeiro sentido da frase “Quero fazer amor com você”: quero foder, meter, atravessar, penetrar, pegar no colo, costurar, jogar, amansar, cuidar, beijar, respirar você. Eu não penso tanto em minhas sensações interiores, subjetividade emocional e sentimentos. Meu foco está na ação que faço em direção ao outro. Amar é precisamente isso: agir em direção ao outro, a partir do outro, a favor do outro.

O “eu” se faz desnecessário. O romantismo é descartado. Voltando à análise sintática, descobrimos os sujeitos inexistentes, como nas frases “Anoitece agora” ou “Há muita gente por aqui”. O que existe é ação e presença. Felicidade, prazer e alegria surgem como se não tivessem causa. Sem centro, de todos os lados. O verdadeiro amor é impessoal.

Prática, postura, ação, gesto, motivação. Amar é isso. Se o amor fosse um sentimento, teríamos de nos separar durante aqueles meses que não conseguimos sentir nada um pelo outro. E isso é mais comum do que podemos imaginar. Meses sem sentir quase nada pelo outro, qual o problema? Ainda assim amamos, ou seja, desejamos e agimos pela felicidade e pelo crescimento do outro.

Se amor fosse um sentimento, do nada seríamos inundados; no entanto, do nada também, seríamos esvaziados. Mas não. Não sentimos amor quando recebemos algo, ou quando somos invadidos por alguma química. Sentimos amor (e nos sentimos amados) quando amamos, quando olhamos o outro assim, quando cuidamos. É esse inesgotável poder de amansar o outro, avançar sobre ele, aninhá-lo e deixá-lo feliz que nos enche de amor, que nos deixa genuinamente felizes. E podemos usar mil linguagens para fazer isso: passional, irada, pacífica, acolhedora, lúdica…

Um amigo meu, por exemplo, com apenas alguns meses de namoro, tudo muito recente, viu sua namorada viajar para a Índia passar dois meses sozinha. Ele poderia ter ido junto, mas não foi. Era uma experiência de crescimento para ela que ele não poderia atrapalhar. E, na verdade, isso era algo que ele mesmo admirava nela. Ele não agiu pelo que sentia, ele agiu por amor.

E não fazemos isso por altruísmo. Se fosse uma obrigação, logo ficaríamos cansados, afinal nos movemos por desejo, alegria e prazer. É preciso desejar, sentir alegria e ter prazer em fazer o outro feliz. É por isso que somos uma generosidade maliciosa: no fundo, sentimos muito tesão em fazer alguém sorrir (muito mais do que quando somos nós que passivamente sorrimos) e mantemos uma gargalhada secreta por detrás dos olhos. Somos deliciosamente maliciosos porque não precisamos de nada de ninguém e, ainda assim, paramos alguém no meio da vida e dizemos: “Vem cá que eu quero andar e dançar a vida junto com você”.

Nossa malícia reside no fato de que amamos o outro sem que ele se torne essencial para nossas vidas. E a leveza da relação surge porque não nos vemos como fonte exclusiva da felicidade do outro (o que seria uma prisão). Ficamos completamente envolvidos, de pernas trançadas, mas sem deixar de andarmos com nossos próprios pés e sem impedir que o outro dance livremente, ainda que não seja conosco. Nossa malícia é a razão pelo qual o outro nos admira: a liberdade que temos de amar qualquer um, de ir para qualquer lugar, a qualquer momento, e mesmo assim (ou justamente por isso) permanecer em casa durante quarenta anos com uma única pessoa.

Esse amor, que não é sentimento algum, mas uma motivação, um voto secreto lembrado diariamente, é o único amor que passa no teste proposto por Alan Wallace no livro Budismo com Atitude:

“O teste do amor versus o apego pode ser feito quando você percebe que uma pessoa que você ama muda para pior. O que acontece? Se o amor for genuíno, os sentimentos de amor crescerão mais fortes. Se o amor for realmente um apego, haverá um afastamento.”

Várias razões para casar?

Agindo de modo livre e autônomo, podemos pegar nosso amor e construir todo tipo de relação. Conheço um cinquentão que tem três namoradas (uma sabe da outra), todas muito felizes. Outro virou monge e escolheu não se relacionar sexualmente com as pessoas. E o mais subversivo, crítico, ateu e libertário casou e acabou de engravidar sua esposa, rumo a uma relação que promete ser bastante duradoura. Todas histórias de amor.

Mesmo com a possibilidade de, sem problema algum, amar várias pessoas em relações curtas e intensas, muitos de nós preferem escolher um único parceiro para arriscar uma relação duradoura, o famoso casamento. Por que ficaríamos com o caminho aparentemente mais difícil e contrário à nossa autonomia hedonista?

Tenho algumas hipóteses. Por logística: namorar duas ou três pessoas dá muito trabalho, consome tempo e dinheiro, e complica as coisas se você pretende ter filhos. Por vontade de experimentar um relacionamento duradouro: saber o que é uma relação intensa é bem fácil, quatro dias e BUM!, você chega no ápice, mas saber o que é passar trinta anos com alguém, bem, isso demora cerca de trinta anos (e depois de 458 filmes e 980 músicas românticas, dá uma curiosidade…). Por acreditar que de algum modo conseguiremos viver aventuras de solteiro junto aos nossos cônjuges. Por projetos pessoais: é muito comum encontrar casais que trabalham juntos ou que, no mínimo, complementam e enriquecem suas vidas profissionais. Por prática espiritual: ter alguém que sabe como ativar todas as suas negatividades sempre por perto é essencial para reconhecê-las e liberá-las. Por pura covardia: ficar solteiro ou em namoros de poucos anos reifica nossa solidão e nossa exclusiva responsabilidade pela felicidade (não há quem culpar por nossos sofrimentos). Quando nossa vida der errado, se estivermos casados, pelo menos teremos alguém para culpar! :-)

Ora, analisando tais motivações, é fácil perceber que, se ficarmos com o outro por vontade de experimentar uma relação duradoura ou por prática espiritual, é muito provável que nosso casamento dure mais do que se ficarmos com ele por algum sentimento ou paixão.

Ainda assim, todas essas razões oscilam. Ora me engajo em um projeto, ora mudo de direção. Às vezes me esqueço da prática espiritual, às vezes minha coragem supera a covardia e fico com vontade de viver sozinho. Tudo pode flutuar sem perturbar a relação, não é mesmo? O casal pode trocar de trabalho, desistir dos filhos, não mais sonhar com uma relação duradoura, abandonar a prática espiritual, e mesmo assim ficar junto. Ou seja, nada disso parece ser a base de um casamento. Nem o mesmo o amor (ação pela felicidade do outro), pois em muitos casos o divórcio é a ação mais generosa.

O casal de velhinhos (ou sobre o voto secreto)

Imagine uma velhinha e um velhinho casados há sessenta anos. Eles já passaram juntos por várias configurações de corpos, emoções, visões de mundo, preocupações e sensações. Já foram bonitos, às vezes magros, às vezes gordos. Já foram apaixonados e entediados. Passaram um longo tempo em uma casa que não existe mais, contemplaram a impermanência, viram muita coisa importante perder a importância… Vida que nasce, cresce e morre.

Comparando o casal adolescente, sessenta anos atrás, em seus primeiros encontros na rua da escola, com o casal que agora se beija timidamente na cozinha, não conseguimos encontrar nenhuma semelhança. Absolutamente tudo mudou!

Pensando melhor, algo se manteve intacto. Enquanto tudo se transformava ao redor, enquanto os dois mudavam por dentro e por fora, eles continuaram juntos. Às vezes por uma razão, às vezes por outra. Às vezes por amor, às vezes por preguiça. Até quando a distância entrava no meio, eles mantinham o voto de ser um casal, de ficar junto.

Uma boa base para o casamento é a motivação de ficar junto. Todo o resto não define o casamento. E quando essa disposição não mais existe, pode existir todo o resto (tesão, paixão, logística, interesses, conforto, cumplicidade, amizade, companheirismo, admiração, amor) que nada sustenta o casamento. Amor, paixão, tesão, cumplicidade e respeito podem continuar existindo em uma relação que não mais acontece pelo casamento. O cara pode continuar amando, admirando, respeitando e beneficiando sua ex-mulher, pode transar eventualmente e até viver uma paixão eventual anos depois. A única coisa que acabou foi a motivação de ficar junto, ou seja, o que de fato sustentava o casamento.

É simples, descomplicado. Nada místico. Totalmente cru, puro bom senso. E por isso relutamos em admitir que essa seja a base de um casamento. Queremos mágica, queremos enfeite, coisa do destino, vidas passadas, sincronicidade. Queremos viver um “amor incondicional”, eterno, além da morte, mas com alguém específico, nossa “alma gêmea”. Nada mais contraditório. Nada mais condicionado.

Quando for pedir uma mulher em casamento, esqueça o discurso “Eu nunca fui tão feliz, você mudou minha vida, quer se casar comigo?”. Admita logo que você não sabe por que a encontrou, que ela não foi seu melhor sexo na vida, que não foi por ela que seu coração bateu mais forte (e sim por uma menina feia quando você tinha 15 anos), que você não é necessário para a felicidade dela e que ela não é pré-requisito para a sua. Admita que você poderia estar com outra, mas que escolheu amá-la, viver ao seu lado, compartilhar vidas e construir mundos. Olhe nos olhos dela e faça um voto silencioso (o que você disser em voz alta não importa):

“Agora eu consigo atravessar e sorrir de dentro de você, mas daqui a pouco essa conexão vai oscilar. Às vezes eu não vou te entender ou vou ficar distante. Às vezes você vai parecer feia e eu fraco. Tudo vai mudar. Mil emoções vão girar, inúmeras coisas vão dançar dentro, fora, entre nós. Por isso a gente faz o voto de ficar junto, no meio disso tudo, e de explorar o amor ao limite, ver até onde ele vai, no que ele se transforma, quais suas mil faces.

Quando tudo desabar, quando duvidarmos, inseguros, de nosso próprio amor, quando doer, quando ficarmos confusos, vamos lembrar que se há um inimigo, se há algum responsável pelo sofrimento, não é você nem eu, mas a confusão. Nós vamos nos juntar até mesmo quando estivermos mal. Vamos nos unir para dissolver nossos obstáculos, em vez de achar que uns problemas são seus e outros meus.

Sentimentos e sensações vem e vão, despontam, passam e cessam. E nós somos o espaço onde isso tudo se dá. Nós somos aquilo que fica. E eu quero ficar, ficar desse jeito, sempre presente, sem fugir, sem me esconder, penetrando tudo o que surgir pela frente, eu quero ficar com você.

Por que você? Sinceramente? Não é que eu confie em você, pois somos todos movimento constante. Eu mesmo não sou uma boa base para nossa relação. Não é exatamente porque você me faz bem ou porque eu beneficio sua vida, mas porque nós juntos fazemos muito bem um ao outro, e nós para os outros. Mais do que de você, gosto mesmo do que somos como um casal.

Eu aposto no espaço entre nós, naquilo que conseguimos fazer surgir juntos. Sei que poderia visualizar isso em outra pessoa, mas por que não com você?

Sinto-lhe informar, mas você vai se casar comigo.”

P.S.: Escrevi este texto sob o contexto de uma relação duradoura, mas isso (e o próprio modelo do casamento) é apenas uma possibilidade no espectro dos relacionamentos amorosos. Abordarei outros arranjos do amor em outros posts.

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