terça-feira, agosto 10, 2010

Casar por amor é uma péssima idéia! – Parte 3

Retirado do site: http://nao2nao1.com.br/casar-por-amor-e-uma-pessima-ideia-parte-3/

Na segunda parte, descrevi exigências e expectativas, além de desmascarar o amor como uma paixão mais duradoura. Agora falo de generosidade e motivação. A pergunta, entretanto, persiste: além dos sentimentos, além do amor romântico, haverá uma outra base para o casamento?

O amor como ação (ou sobre a generosidade maliciosa que podemos ser)

Nosso problema (e o texto) começa na paixão, então vamos assumir que talvez paixão e amor não sejam coisas diferentes. Quebrar o senso comum. Alterar o início de tudo. Olhar nosso papel ativo no percurso amoroso.

Podemos recontar a história da paixão sem demonizá-la. Em vez de assujeitamento ou padecimento, ação vigorosa. Em vez de cair, andar. Quando estamos apaixonados, vemos qualidades positivas no outro (algumas já existentes, algumas projetadas, idealizadas, alucinações nossas, mas a maioria sementes que de fato florescem depois, quando mostramos com orgulho para todo mundo que duvidou: “Viu, ele sempre foi assim!”), temos energia constante (amantes não tem sono, já percebeu? não dormem e ainda são os mais atentos no trabalho durante o dia) e incentivamos nosso parceiro para que ele seja cada vez melhor e mais feliz. A paixão, nesse sentido, é o próprio amor logo de cara. Não aquele amor sentimento, romantizado, que colocava nossa felicidade em poder do outro (“Você faz, eu sinto”), mas um amor no qual somos nós que descobrimos o poder de fazer o outro feliz.

Isso tudo acontece em paralelo aos processos de fixação no outro. Misturamos as duas versões da história passional, atividade e passividade, oferecer e receber. Nosso coração confunde a felicidade que sentimos por oferecer com a alegria de receber. Sentimos tudo junto, sem distinção. É por isso que quando o outro se vai, nos deprimimos e demoramos a resgatar nossa capacidade de oferecer, sempre disponível, verdadeira fonte de felicidade.

Em meio a uma paixão, observe que sua verdadeira alegria vem do fato de você se descobrir capaz de causar felicidade, de fazer a diferença. Sua vida ganha sentido porque você dá sentido a uma outra vida. Contemple isso, separe isso da satisfação temporária de suas carências, exigências, mimos e expectativas autocentradas. Enquanto estiver apaixonado, olhe para você mesmo como um veículo da felicidade do outro e contribua para irrigá-la. Quando desejamos a felicidade do outro (mesmo que não seja conosco), e existem práticas meditativas específicas fazer disso um treino diário, lentamente liberamos a fixação, superamos o apego e qualquer sofrimento que o outro possa vir a causar em nós. Na ausência de apego, o outro não tem poder sobre nós. Então podemos nos aproximar, nos envolver e amá-lo ainda mais, sem medo algum de se machucar.

O amor é essa ação que já está presente na disposição incessante que ganhamos quando nos apaixonamos. Amor que já começa na primeira noite de sexo. Sim, pois eu não sinto amor, eu faço amor. Eis o verdadeiro sentido da frase “Quero fazer amor com você”: quero foder, meter, atravessar, penetrar, pegar no colo, costurar, jogar, amansar, cuidar, beijar, respirar você. Eu não penso tanto em minhas sensações interiores, subjetividade emocional e sentimentos. Meu foco está na ação que faço em direção ao outro. Amar é precisamente isso: agir em direção ao outro, a partir do outro, a favor do outro.

O “eu” se faz desnecessário. O romantismo é descartado. Voltando à análise sintática, descobrimos os sujeitos inexistentes, como nas frases “Anoitece agora” ou “Há muita gente por aqui”. O que existe é ação e presença. Felicidade, prazer e alegria surgem como se não tivessem causa. Sem centro, de todos os lados. O verdadeiro amor é impessoal.

Prática, postura, ação, gesto, motivação. Amar é isso. Se o amor fosse um sentimento, teríamos de nos separar durante aqueles meses que não conseguimos sentir nada um pelo outro. E isso é mais comum do que podemos imaginar. Meses sem sentir quase nada pelo outro, qual o problema? Ainda assim amamos, ou seja, desejamos e agimos pela felicidade e pelo crescimento do outro.

Se amor fosse um sentimento, do nada seríamos inundados; no entanto, do nada também, seríamos esvaziados. Mas não. Não sentimos amor quando recebemos algo, ou quando somos invadidos por alguma química. Sentimos amor (e nos sentimos amados) quando amamos, quando olhamos o outro assim, quando cuidamos. É esse inesgotável poder de amansar o outro, avançar sobre ele, aninhá-lo e deixá-lo feliz que nos enche de amor, que nos deixa genuinamente felizes. E podemos usar mil linguagens para fazer isso: passional, irada, pacífica, acolhedora, lúdica…

Um amigo meu, por exemplo, com apenas alguns meses de namoro, tudo muito recente, viu sua namorada viajar para a Índia passar dois meses sozinha. Ele poderia ter ido junto, mas não foi. Era uma experiência de crescimento para ela que ele não poderia atrapalhar. E, na verdade, isso era algo que ele mesmo admirava nela. Ele não agiu pelo que sentia, ele agiu por amor.

E não fazemos isso por altruísmo. Se fosse uma obrigação, logo ficaríamos cansados, afinal nos movemos por desejo, alegria e prazer. É preciso desejar, sentir alegria e ter prazer em fazer o outro feliz. É por isso que somos uma generosidade maliciosa: no fundo, sentimos muito tesão em fazer alguém sorrir (muito mais do que quando somos nós que passivamente sorrimos) e mantemos uma gargalhada secreta por detrás dos olhos. Somos deliciosamente maliciosos porque não precisamos de nada de ninguém e, ainda assim, paramos alguém no meio da vida e dizemos: “Vem cá que eu quero andar e dançar a vida junto com você”.

Nossa malícia reside no fato de que amamos o outro sem que ele se torne essencial para nossas vidas. E a leveza da relação surge porque não nos vemos como fonte exclusiva da felicidade do outro (o que seria uma prisão). Ficamos completamente envolvidos, de pernas trançadas, mas sem deixar de andarmos com nossos próprios pés e sem impedir que o outro dance livremente, ainda que não seja conosco. Nossa malícia é a razão pelo qual o outro nos admira: a liberdade que temos de amar qualquer um, de ir para qualquer lugar, a qualquer momento, e mesmo assim (ou justamente por isso) permanecer em casa durante quarenta anos com uma única pessoa.

Esse amor, que não é sentimento algum, mas uma motivação, um voto secreto lembrado diariamente, é o único amor que passa no teste proposto por Alan Wallace no livro Budismo com Atitude:

“O teste do amor versus o apego pode ser feito quando você percebe que uma pessoa que você ama muda para pior. O que acontece? Se o amor for genuíno, os sentimentos de amor crescerão mais fortes. Se o amor for realmente um apego, haverá um afastamento.”

Várias razões para casar?

Agindo de modo livre e autônomo, podemos pegar nosso amor e construir todo tipo de relação. Conheço um cinquentão que tem três namoradas (uma sabe da outra), todas muito felizes. Outro virou monge e escolheu não se relacionar sexualmente com as pessoas. E o mais subversivo, crítico, ateu e libertário casou e acabou de engravidar sua esposa, rumo a uma relação que promete ser bastante duradoura. Todas histórias de amor.

Mesmo com a possibilidade de, sem problema algum, amar várias pessoas em relações curtas e intensas, muitos de nós preferem escolher um único parceiro para arriscar uma relação duradoura, o famoso casamento. Por que ficaríamos com o caminho aparentemente mais difícil e contrário à nossa autonomia hedonista?

Tenho algumas hipóteses. Por logística: namorar duas ou três pessoas dá muito trabalho, consome tempo e dinheiro, e complica as coisas se você pretende ter filhos. Por vontade de experimentar um relacionamento duradouro: saber o que é uma relação intensa é bem fácil, quatro dias e BUM!, você chega no ápice, mas saber o que é passar trinta anos com alguém, bem, isso demora cerca de trinta anos (e depois de 458 filmes e 980 músicas românticas, dá uma curiosidade…). Por acreditar que de algum modo conseguiremos viver aventuras de solteiro junto aos nossos cônjuges. Por projetos pessoais: é muito comum encontrar casais que trabalham juntos ou que, no mínimo, complementam e enriquecem suas vidas profissionais. Por prática espiritual: ter alguém que sabe como ativar todas as suas negatividades sempre por perto é essencial para reconhecê-las e liberá-las. Por pura covardia: ficar solteiro ou em namoros de poucos anos reifica nossa solidão e nossa exclusiva responsabilidade pela felicidade (não há quem culpar por nossos sofrimentos). Quando nossa vida der errado, se estivermos casados, pelo menos teremos alguém para culpar! :-)

Ora, analisando tais motivações, é fácil perceber que, se ficarmos com o outro por vontade de experimentar uma relação duradoura ou por prática espiritual, é muito provável que nosso casamento dure mais do que se ficarmos com ele por algum sentimento ou paixão.

Ainda assim, todas essas razões oscilam. Ora me engajo em um projeto, ora mudo de direção. Às vezes me esqueço da prática espiritual, às vezes minha coragem supera a covardia e fico com vontade de viver sozinho. Tudo pode flutuar sem perturbar a relação, não é mesmo? O casal pode trocar de trabalho, desistir dos filhos, não mais sonhar com uma relação duradoura, abandonar a prática espiritual, e mesmo assim ficar junto. Ou seja, nada disso parece ser a base de um casamento. Nem o mesmo o amor (ação pela felicidade do outro), pois em muitos casos o divórcio é a ação mais generosa.

O casal de velhinhos (ou sobre o voto secreto)

Imagine uma velhinha e um velhinho casados há sessenta anos. Eles já passaram juntos por várias configurações de corpos, emoções, visões de mundo, preocupações e sensações. Já foram bonitos, às vezes magros, às vezes gordos. Já foram apaixonados e entediados. Passaram um longo tempo em uma casa que não existe mais, contemplaram a impermanência, viram muita coisa importante perder a importância… Vida que nasce, cresce e morre.

Comparando o casal adolescente, sessenta anos atrás, em seus primeiros encontros na rua da escola, com o casal que agora se beija timidamente na cozinha, não conseguimos encontrar nenhuma semelhança. Absolutamente tudo mudou!

Pensando melhor, algo se manteve intacto. Enquanto tudo se transformava ao redor, enquanto os dois mudavam por dentro e por fora, eles continuaram juntos. Às vezes por uma razão, às vezes por outra. Às vezes por amor, às vezes por preguiça. Até quando a distância entrava no meio, eles mantinham o voto de ser um casal, de ficar junto.

Uma boa base para o casamento é a motivação de ficar junto. Todo o resto não define o casamento. E quando essa disposição não mais existe, pode existir todo o resto (tesão, paixão, logística, interesses, conforto, cumplicidade, amizade, companheirismo, admiração, amor) que nada sustenta o casamento. Amor, paixão, tesão, cumplicidade e respeito podem continuar existindo em uma relação que não mais acontece pelo casamento. O cara pode continuar amando, admirando, respeitando e beneficiando sua ex-mulher, pode transar eventualmente e até viver uma paixão eventual anos depois. A única coisa que acabou foi a motivação de ficar junto, ou seja, o que de fato sustentava o casamento.

É simples, descomplicado. Nada místico. Totalmente cru, puro bom senso. E por isso relutamos em admitir que essa seja a base de um casamento. Queremos mágica, queremos enfeite, coisa do destino, vidas passadas, sincronicidade. Queremos viver um “amor incondicional”, eterno, além da morte, mas com alguém específico, nossa “alma gêmea”. Nada mais contraditório. Nada mais condicionado.

Quando for pedir uma mulher em casamento, esqueça o discurso “Eu nunca fui tão feliz, você mudou minha vida, quer se casar comigo?”. Admita logo que você não sabe por que a encontrou, que ela não foi seu melhor sexo na vida, que não foi por ela que seu coração bateu mais forte (e sim por uma menina feia quando você tinha 15 anos), que você não é necessário para a felicidade dela e que ela não é pré-requisito para a sua. Admita que você poderia estar com outra, mas que escolheu amá-la, viver ao seu lado, compartilhar vidas e construir mundos. Olhe nos olhos dela e faça um voto silencioso (o que você disser em voz alta não importa):

“Agora eu consigo atravessar e sorrir de dentro de você, mas daqui a pouco essa conexão vai oscilar. Às vezes eu não vou te entender ou vou ficar distante. Às vezes você vai parecer feia e eu fraco. Tudo vai mudar. Mil emoções vão girar, inúmeras coisas vão dançar dentro, fora, entre nós. Por isso a gente faz o voto de ficar junto, no meio disso tudo, e de explorar o amor ao limite, ver até onde ele vai, no que ele se transforma, quais suas mil faces.

Quando tudo desabar, quando duvidarmos, inseguros, de nosso próprio amor, quando doer, quando ficarmos confusos, vamos lembrar que se há um inimigo, se há algum responsável pelo sofrimento, não é você nem eu, mas a confusão. Nós vamos nos juntar até mesmo quando estivermos mal. Vamos nos unir para dissolver nossos obstáculos, em vez de achar que uns problemas são seus e outros meus.

Sentimentos e sensações vem e vão, despontam, passam e cessam. E nós somos o espaço onde isso tudo se dá. Nós somos aquilo que fica. E eu quero ficar, ficar desse jeito, sempre presente, sem fugir, sem me esconder, penetrando tudo o que surgir pela frente, eu quero ficar com você.

Por que você? Sinceramente? Não é que eu confie em você, pois somos todos movimento constante. Eu mesmo não sou uma boa base para nossa relação. Não é exatamente porque você me faz bem ou porque eu beneficio sua vida, mas porque nós juntos fazemos muito bem um ao outro, e nós para os outros. Mais do que de você, gosto mesmo do que somos como um casal.

Eu aposto no espaço entre nós, naquilo que conseguimos fazer surgir juntos. Sei que poderia visualizar isso em outra pessoa, mas por que não com você?

Sinto-lhe informar, mas você vai se casar comigo.”

P.S.: Escrevi este texto sob o contexto de uma relação duradoura, mas isso (e o próprio modelo do casamento) é apenas uma possibilidade no espectro dos relacionamentos amorosos. Abordarei outros arranjos do amor em outros posts.

Casar por amor é uma péssima idéia! – Parte 2

Retirado do site: http://nao2nao1.com.br/casar-por-amor-e-uma-pessima-ideia-parte-2/

Na primeira parte, critiquei o amor como sentimento e nosso mimo hedonista. Agora falo sobre exigências, expectativas e paixões. Além dos sentimentos, haverá uma outra base para o casamento?

O All-in de nossas vidas (ou sobre exigências e intolerâncias)

“A expectativa excessiva produz intolerância. Com isso, negociar e procurar os compromissos sempre necessários numa vida de casal (e, em geral, numa família) parecem constituir uma traição de nossos sonhos de união perfeita. Nós nos divorciamos por esperar demais do casamento.” –Contardo Calligaris

Eu sou fã de Seinfeld. Sempre dou risada com os motivos que eles alegam para acabar seus relacionamentos. Uma garota tinha a cabeça muito grande, outra tinha mãos masculinas, outra não ria de piada alguma, outra cortou o cabelo muito curto. E teve aquela que não deixava o Jerry fazer “a voz”… Com a Elaine, um cara tinha o banheiro sujo, outro não anotou o recado corretamente, outro não ofereceu torta, outro era contra o aborto… Mas todas perdem para a garota das ervilhas:

George: So, what’s going on with you and Melanie? I mean, I know you’re not getting married, but uh, things are happening?
Jerry: Well…actually, we kind of broke up.
George: You what?
Jerry: Well, you know, we were having dinner the other night, and she’s got this strangest habit. She eats her peas one at a time. You’ve never seen anything like it. It takes her an hour to finish them.

Rimos porque Elaine, Jerry, Kramer e George são caricaturas nossas. Em conversas sobre o namoro ou casamento com amigos ou amigas, sempre que consideramos a separação, começamos a listar o que não gostamos no outro: “Eu odeio quando ele faz isso!”. Descrevemos as ervilhas da relação. Podemos imaginar um tipo de amor incondicional, etéreo, transcendente, divino, imaculado, mas não é bem isso que encontramos em nosso corpo e em nossa mente.

Conosco, em falatório interno, fazemos uma outra lista: a de nossas exigências e expectativas. Se estamos juntos a alguém, não é porque estamos compartilhando vidas, caso contrário nenhuma separação seria traumática, mas porque estamos recebendo algo que exigimos. Para muitos, o casamento é nossa maior aposta na felicidade, o grande All-in de nossas vidas. Ao olharmos para nosso parceiro, no fundo, pensamos: “Se existe felicidade, o caminho é por ali!”. Assim que tal processo começa a falhar, as expectativas gritam: “Eu não estou sendo tão feliz quanto eu esperava!”. Nossa dor é do tamanho de nossa aposta romântica. O problema é que o prazer também, então apostamos alto…

Assim, em um mundo cheio de possibilidades, se estamos com uma mulher que não faz sexo anal, por que não trocá-la por outra que adora ser penetrada de tudo quanto é jeito? Se estamos com um homem que não sabe nenhum passo de tango, é hora de considerar substitui-lo por um tangueiro charmoso. Se não tivéssemos apostado todas as nossas cartas no outro, não haveria problema algum em conviver com suas imperfeições. Só que ele recebeu muito para nos entregar apenas isso! Depois da aposta, só ficaremos satisfeitos quando levarmos o grande prêmio, o pacote completo da felicidade.

Essa semana, na Cabana PdH, um homem relatou alguns obstáculos sexuais que está enfrentando com a namorada. Alguém sugeriu terminar a relação e eu respondi: “Se ele terminar agora, é bem possível que ele leve mais dois anos com outra mulher para chegar precisamente no mesmo obstáculo”. Mimados e frescos, não comemos rúcula porque não gostamos, assim como queremos acabar a relação assim que alguns problemas começam a surgir. Não queremos dor e sofrimento, não queremos abandonar nosso conforto para lidar com as necessidades do parceiro. Queremos fazer apenas aquilo que gostamos, não o que é preciso. Junto com as noites de sexo, existem as noites de cólicas, febre ou simplesmente tédio. Você quer tocar e envolver somente uma parte do outro?

Tais questões talvez sejam bobas aos olhos de alguns homens de outras épocas, que provavelmente responderiam: “É claro que você tem de cuidar dela! Ela é sua mulher!” – o mesmo vale para as mulheres, claro. No entanto, atualmente é difícil se opor ao seguinte argumento: “Estou infeliz com ele, não preciso passar por isso”. Como perdemos as bases heterônimas que nos faziam manter a relação (Igreja, Estado e o olhar social como um todo), ainda não sabemos como sustentar as relações de modo autônomo, afinal nossa autonomia é também essa voz que não pára de falar “Ei, você pode ser feliz com outro homem!”.

A paixão camuflada de amor

O dilema apresentado na primeira parte do texto não tem saída. Seus desdobramentos não chegam a lugar algum. Patinamos e alternamos entre diversas visões, teorias, crenças e caminhos que só nos conduzem ao problema inicial: “Se a paixão é impermanente e o amor incondicional uma quimera destinada a seres iluminados, qual seria uma boa base para o casamento?”.

Tal pergunta se funda na crença de que paixão e amor são coisas diferentes (pano de fundo da grande maioria dos comentários). Cito um dos leitores:

“Deve-se levar também em consideração a definição que o autor tem de amor. Aparentemente, dentro de sua visão, o amor é apenas um sentimento, algo que está apenas no plano emocional. Eu chamo isso de paixão.”

Veja, essa não é minha definição de amor, isso é como a maioria de nós vive – justamente o que me propus a criticar! Eu estava apenas descrevendo nossa situação (tanto que o tópico é “O amor como sentimento”, não “O que é amor”). Sejamos sinceros: nas relações que vivemos, nos precipitamos em chamar de amor apenas uma paixão que durou um pouco mais e adentrou nossa vida a ponto de exigir mais de nós. O funcionamento desse amor é o mesmo que o de uma paixão, tanto que é raro acontecer uma separação tranquila ao fim de uma relação longa. Ora, se temos amor incondicional, por que ficaríamos mal quando alguém nos deixasse para ser mais feliz com outra pessoa?

Dentro de nossos pulmões, veias e corações, o amor incondicional perde para a paixão. Um é conceito abstrato (bonito, espiritual, mas abstrato) enquanto o outro é vivo, pulsa, nos enche de ar e brilho nos olhos. Só vamos poder falar em “amor incondicional” quando isso for nosso oxigênio, motivo de acordar e sorrir pela manhã. Enquanto isso não acontece, é melhor trabalhar com o que temos nítido diante dos olhos: a paixão.

É ingenuidade afirmar um amor incondicional e achar que nossas relações amorosas chegam nesse nível depois de passar no teste do tempo e superar as turbulências passionais. Nada mais equivocado! Quando não mais estamos apaixonados, dizemos: “Eu não o amo mais”. E então alguém diz: “Se acabou, é porque não era amor”. Mas isso apenas altera nossa frase: “Então eu nunca o amei”. Podemos alegar visões elevadas, mas quando nosso peito está em jogo, o amor é, sim, sentimento condicionado, paixão camuflada.

Ao esconder a paixão sob o rótulo de amor, algo acontece: perdemos o amor. Deixamos de aproveitar a chance de construir uma relação de amor autêntico logo no início.

Casar por amor é uma péssima idéia! – Parte 1

Retirado do site: http://nao2nao1.com.br/casar-por-amor-e-uma-pessima-ideia/

Nossos sentimentos e emoções vem e vão, crescem e desaparecem, como fases da Lua. Por que então tomá-los como base de nossas relações?

O amor como sentimento (ou sobre as crianças mimadas que somos)

“Na mesma época em que as crianças se tornaram representantes de nossa vida além da morte, começamos a organizar nossa sociedade pelos sentimentos. Não só nos casamos por amor, mas até nossos laços de sangue pouco valem sem os afetos. Passamos de um mundo em que havia laços com ou sem sentimentos (tanto fazia) a um mundo em que os sentimentos são condição dos laços.” –Contardo Calligaris

Nós queremos ser chacoalhados. Filmes, músicas, drogas, álcool, chocolates, viagens, sapatos, amores… Somos felizes quando somos movidos por algo. Toda paixão – como já sugere a raiz grega, páthos – é uma forma de passividade. Nós sofremos paixão, padecemos, nos assujeitamos. Caímos arrebatados, atropelados. We fall in love: a paixão é algo que nos acontece.

Primeiro, a confissão “Estou apaixonado por ele!”, que significa “Ele faz coisas comigo, ele me deixa viva, linda e feliz”. Depois, “Eu te adoro”, nada diferente de pedir que o outro continue nos movendo, seguido pelo clássico “Eu te amo”, ou seja, “É por você que quero ser amada”. E enfim o pedido de casamento, cujo discurso gira em torno de “Eu nunca fui tão feliz como nos últimos anos, por isso quero passar o resto da minha vida com você” (assista aos dois primeiros pedidos: os caras não falam da vida delas, mas de sua própria felicidade). Em nosso autocentramento, o “Eu” de tais frases não é ator algum. É sujeito.

Se casamos por um amor desses, assim que o outro pára de nos mover, de injetar felicidade em nós, de causar tesão, nossa passividade se revela pura estagnação (pois afinal nunca nos movemos de fato, é sempre o outro que nos puxa de lá para cá). Quando ele pára de nos mover, paramos de amar. Trocamos então o “Eu te amo” por “Eu quero me separar”. O motivo? O outro nos fazia feliz, agora não mais. Razão suficiente para terminar uma relação, não é mesmo?

Se fosse apenas com as relações amorosas… O sentimento é considerado critério de veracidade, referencial ético, fundamento inquestionável para qualquer ação. Ele saiu do trabalho porque não estava se sentindo bem lá. Ela fuma porque gosta do que o cigarro a faz sentir. Ele quase não visita sua família porque se sente desconfortável entre tios e primos, gente chata e sem graça. E, claro, ela terminou o casamento porque o amor acabou. Os sentimentos são nosso refúgio e nossa certeza. Nossa intuição mais profunda: “Se eu sinto assim, então só pode ser verdade!”.

Tomando os sentimentos e as sensações como referencial, procuramos por tudo aquilo que nos faz sentir bem e nos afastamos das situações e seres que não nos trazem prazer. Com isso, nos tornamos mimados: “Rúcula eu não como porque não gosto”. A nova geração de homens “frescos” que não comem alguns legumes e verduras é impressionante! Esses dias conheci um cara que não come mamão. Pode isso? (Toda mulher deveria desconfiar do desempenho sexual de um homem que não come de tudo).

Por sermos mimados, acabamos por formar crianças mimadas. Contardo Calligaris (em “As crianças do divórcio”) explica:

“Na sociedade atual, o projeto de ser feliz é mais importante do que qualquer obrigação – inclusive a de criar as crianças no quadro de uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o que mais importa é se dar bem.” [...]

“Muitas vezes nos queixamos, porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi transmitido quando decidimos que nosso anseio de felicidade, conforto e prazer não deve recuar – nem mesmo pelo bem deles.”

Como sabemos que nos indispomos ao menor desconforto (e que o outro funciona do mesmo modo), evitamos ao máximo causar atritos no sentimento que elegemos como base da relação. Sob o risco do amor do outro acabar, temendo sermos abandonados como um brinquedo antigo jogado no fundo do armário, também mimamos nossos maridos e esposas. Tentamos não confrontar suas negatividades para que eles nunca deixem de se sentir amados. Ao mesmo tempo, nós também queremos nos sentir amados, então mimamos para sermos mimados – eis nosso pacto de mediocridade.

“Os laços construídos ao redor do amor são dos mais precários; os casamentos por amor duram menos, ao que parece, do que os contratos do passado. E, quando duram, podem doer mais (tipo: nossa vida é um inferno, a gente não se entende, mas ficamos juntos porque nos amamos).” –Contardo Calligaris

Como sentimento, o amor é inseparável da paixão que o fez nascer. É a lembrança dessa vinculação que, depois de anos de relacionamento, nos preocupa lá pelo quarto mês de paixão ausente: “Ele não me procura mais”, “Ela parece que não gosta mais de mim”. Se não há paixão, parece não restar mais amor, então outros sentimentos e emoções tomam conta do casal (já que o sentimento é sua fundação), muitas vezes o fazendo ruir de dentro para fora. Sem amor, qual o sentido de ficar junto?

Nosso mimo hedonista quase não é um problema comparado ao sofrimento gerado pela impermanência, pelas oscilações dos sentimentos. Funciona assim: um sentimento surge, dita o que é verdade para mim, dá sentido a todo o meu momento e me impulsiona para uma ação, então me movo em uma direção, até que o sentimento cessa (e com ele a verdade, o sentido e a ação) e me sinto perdido, confuso e impotente, sem entender como fui parar em um local desconfortável sendo que estava andando em direção a um horizonte de felicidade.

Exemplos? Alguns casos que recebi por email nos últimos meses: uma mulher casada se apaixonou por outro, se separou para viver a paixão (que acabou) e agora sofre por não conseguir voltar para o casamento; um homem entrou em uma relação porque se sentia bem com a parceira mas não queria tomar esse direcionamento na vida e agora está mal por ter deixado seus projetos de lado; uma mulher que não gosta mais do marido, mas tem uma vida perfeita de casal, deseja muito se apaixonar por ele novamente, caso contrário diz que terá de se separar…

Se colocamos duas pessoas, lado a lado, se amando assim, arrastadas por sentimentos, qual a probabilidade de elas continuarem próximas por um longo tempo?